Opostos Atraentes
- Por Lillian Barbieri
- 25 de mai. de 2016
- 6 min de leitura
Como a cultura japonesa foi incorporada no Brasil durante séculos de adaptação
Mangás, sushi, temaki, hashi, kimono são caraterísticas da cultura japonesa que conhecemos hoje, mas nem sempre foi assim. Tal cultura tão rica em elementos foi mudada e adaptada diversas vezes durante sua estadia no Brasil, principalmente em São Paulo. Desde 1908, quando houve o primeiro fluxo de japoneses pioneiros aqui em terras brasileiras, nossos costumes, e também os deles, nunca mais foram os mesmos.
Um barco praticamente feito de pura esperança trouxe o primeiro fluxo de japoneses para o Brasil, que na época era um país com oportunidades interessantes para aqueles que precisavam de uma mudança. Era o ano de 1908 quando a comunidade japonesa chegou na zona rural de São Paulo e também por outras partes do país. Como é sabido por senso comum, o Japão é um país com culturas muito fortes e poderosas, e é claro que esta carga de ideais veio com cada um daqueles que estavam dentro do navio, protegida da forma mais materna possível. Como uma criança frágil, a tradição japonesa foi guardada. A preocupação que todos tinham em preservar suas raízes era motivada pelo “sonho japonês”, que não era nada mais do que conseguir estabilidade financeira no Brasil e voltar à sua terra natal. Ainda que os pioneiros da imigração não pudessem regressar, seus filhos com certeza o fariam e para isso, deveriam aprender o necessário para “ser japonês”.
Sendo assim, a cultura japonesa não era conhecida. Isolava-se dentro da comunidade e de seus integrantes, já que até mesmo os contatos sociais eram escassos entre japoneses e brasileiros naquela época. Mas, todos os planos mudariam com a Segunda Guerra Mundial. O desastre que destruiu o Japão completamente, levou consigo não só inúmeras mortes como também as esperanças que estavam do outro lado do mundo. Os anos da guerra foram sofridos para imigrantes no Brasil; tanto japoneses como alemães e italianos sofreram com perseguições do governo brasileiro, isolamento social, tiveram suas instituições e escolas fechadas, por serem o inimigo.
Os japoneses não realizariam seu sonho, afinal, não se pode retornar a um país em pedaços.
“Perdedores da guerra” era como os eram vistos em nosso país. Com as relações cortadas com o Japão, os imigrantes e descendentes (segunda geração) que estavam no Brasil tomaram uma medida drástica. “De japonês, só o rosto. Agora eu sou brasileiro”, exemplifica o pensamento da época Célia Abe Oi, coordenadora de comunicação do BUNKYO (Associação Brasileira de Cultura Japonesa e Assistência Social). Assim, a segunda geração de japoneses, estes nascidos no Brasil, era completamente brasileira, desde o primeiro idioma ser português até os costumes, “deixam de dar nomes japoneses aos filhos, porque… eles não retornariam ao Japão, então pra quê?”, exemplifica mais uma vez Célia; a tradição era apenas conhecimento, não tão rigorosa como antes.
De todo desastre trazido pela Segunda Guerra, algo de bom surgiu. As cidades brasileiras tiveram um crescimento interessante, atraindo os imigrantes de tal forma que o êxodo rural foi intenso. Para que isso acontecesse de forma correta, a estrutura da família japonesa, até então rural, mudou completamente: um ou dois dos filhos estudaria para que, num futuro próximo, sustentasse a família, enquanto os outros ajudavam os pais com a nova atividade, o comércio. Foram abertas mercearias, farmácias, bares, armazéns pelos imigrantes, não apenas japoneses, que decidiram apostar a vida nas cidades.
A segunda geração, então, foi o verdadeiro híbrido entre japoneses e brasileiros. Ainda que não fosse totalmente reconhecida pela sociedade, aos poucos a cultura japonesa deixou de ser um segredo a ser preservado e foi se esgueirando por entre os costumes e alcançando escolas, por exemplo, com a prática do judô. Com o objetivo de ensinar, não apenas a lutar, mas também o espírito da organização, do respeito ao próximo, a disciplina (hoje muito relacionada ao esteriótipo japonês). Outro exemplo interessante é a arte Ikebana, encontrada em vários estabelecimentos, que nada mais é do que uma composição de elementos florais (alto, médio e baixo), dispostos da maneira como o artista achar melhor, que inspiram harmonia e paz, e transmitem a simplicidade e minimalismo japonês.
Ainda que no Brasil a cultura japonesa estivesse estagnada no passado, o mundo lá fora estava em constante movimento. A Segunda Guerra capitalizou o Japão, inserindo no país novos ideais de política, economia, cultura, arte, comunicação. Por meados dos anos 70, “de repente é muito legal mascar chiclete, todos começam a achar lindo chupar drops”, comenta Célia enquanto ri por entre suas palavras. A cultura japonesa deixa de ser a mesma de sempre, o tradicional é consumido por palavras em inglês que mudam o idioma, a linguagem popular, por novas tecnologias que fazem o país crescer de forma absurda.
“Para a sociedade brasileira, japonês era um cara que tinha perdido a guerra (...) de repente chegam empresas aqui de um país de primeiro mundo”, confessa Célia. O milagre econômico pós-guerra tirou o Japão do limbo e o transformou, “você imagina que isso daí teve uma influência, óbvia, positiva nessa comunidade brasileira e na chamada cultura japonesa”, expressa Célia de forma sincera. É a partir desse ponto, nos anos 80, que as pessoas se dão conta da existência da Liberdade; o bairro é invadido por brasileiros curiosos em saber da nova cultura que invade o país, mas que na verdade, sempre esteve entre eles.
Ao mesmo tempo que o brasileiro começa a descobrir as maravilhas da cultura nipônica, a segunda geração de descendentes, descontente com as crises econômicas brasileiras, decide inverter o sistema que acontecia até o momento. Nomeados como decasséguis (aquele que se muda para trabalhar, para fazer a vida), inverteram a imigração já conhecida e foram para o Japão, esperançosos por uma vida financeira mais estável. A esperança de encontrar um Japão tradicional, como tinham aprendido na infância, foi por água abaixo, afinal, a chegada dos Estados Unidos modificou tudo. É trabalhoso adentrar-se na sociedade da era Heisei (atual), quando desde sempre o que se conhece é sobre a era Meiji tradicional; o capitalismo atingiu muito mais que apenas a economia japonesa, afetou os japoneses em seu modo de relacionamento com as pessoas. Quando os decasséguis retornam ao Brasil, trazem consigo a cultura completamente atualizada e renovada, mas de jeito nenhum clássica: “eles vão trabalhar no chão de fábrica, então eles trazem uma cultura popular, de gente normal”, esclarece Célia.
Na mesma época, durante os anos 80, um novo fluxo de japoneses, descontentes com a política e suas vidas, chegam ao Brasil. Dessa vez são músicos, artistas, escritores, pintores que desembarcam no país para modernizar ainda mais a visão ocidental sobre os japoneses. Acontece quase uma revolução: o boom da cultura nipônica gera interesse por mangás, filmes orientais, músicas, culinária, religiões, templos, esportes, acabando por se tornar, finalmente, o que conhecemos hoje.
Sendo assim, o que se entende hoje por “cultura japonesa” é uma grande adaptação da tradição original, e foi estabelecida há pouco tempo. Um ponto interessante para se citar é que, mesmo a Liberdade sendo conhecido como “bairro japonês”, nos dias de hoje ele abrange muito mais chineses e coreanos do que, de fato, japoneses. De acordo com Mitiê Yamashita, gerente da Livraria Sol, que fica na praça da Liberdade, há mais de 20 anos, “a Liberdade já foi conhecida como bairro japonês, mas hoje é muito difícil encontrar um japonês que não seja descendente. Os chineses já tomaram conta do lugar, eles vêm para cá com dinheiro e têm como se manter”, diz a japonesa, com uma pontada de descontentamento na voz. Mitiê também comenta algo muito importante, que quebra com a história e tradição que fora modificada há muitos anos, “hoje os filhos não querem saber de seguir o negócio da familía, eles só querem estudar”, responde ela enquanto dá de ombros, como se não houvesse mais o que fazer sobre tal situação.
O entrelaçar das duas culturas, que aos poucos vai aceitando outras, é algo bonito de se ver, pois elas convivem em plena harmonia, chegando ao ponto de não sabermos mais o que é japonês e o que é brasileiro. Kimio Ido, japonês de Nagoya que vive no Brasil há 1 ano e meio, é um exemplo incrível. Ele comenta que mora aqui por causa do time Corinthians, que é muito famoso em seu país, mas que adora a cultura brasileira e que sempre se sentiu em casa estando aqui. “Eu gostaria de morar em outro bairro, não ficar só na liberdade, porque quero me fazer mais brasileiro”, diz ele, em português um português difícil e cheio de sotaque, mas que não o limita de fazer absolutamente nada neste país que agora é sua casa, como já foi e será de muitos outros japoneses.
Há pessoas, como Mitiê, que dizem que a cultura japonesa desapareceu por entre as novas etnias que chegaram em seu ponto de disseminação, a Liberdade. Mas, na verdade, ela não desapareceu, e sim foi incorporada na cultura brasileira e paulista de tal forma que se tornaram uma única cultura miscigenada e rica. Pode-se dizer que hoje a cultura japonesa que conhecemos é uma adaptação incrível, tanto por eles mesmos quanto por nós, brasileiros. Não se sabe mais o que é japonês, se uma coisa específica veio de lá ou é daqui mesmo… As duas culturas literalmente se mesclaram a ponto de que qualquer um pode ler um mangá (facilmente comprado em uma banca de esquina) enquanto come um caqui (fruta originalmente japonesa), sem ao menos perceber que está deleitando-se da cultura japonesa. É bonito ver como o cenário da Liberdade se tornou apenas mais um ponto de SP, harmonioso com a cidade e diferente dentro de seus limites.
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