Pato feio ou cisne formoso
- Nathália Zagari
- 10 de mai. de 2016
- 7 min de leitura
O centro pode não apresentar suas riquezas para os desatentos, como pode encantar com sua beleza os gentis que lhe dão atenção
Buzinas, mau cheiro, fluxo intenso de pessoas, cinza, extremo cinza. Esta é a recordação que muitos paulistanos, e visitantes, guardam do centro da cidade de São Paulo. Talvez a imagem permaneça por conta da falta de paciência que os mais de 2 milhões de passantes diários tem em olhá-lo com cautela. Por vezes, a riqueza material e cultural da região é deixada de lado. São as riquezas que ninguém vê.
O triângulo histórico Sé, São Bento e Santa Efigênia, por exemplo, preserva boas e importantes lembranças da quarta maior metrópole do mundo que por muito tempo foram esquecidas. Construções coloniais, republicanas e modernas, diversidade de etnias e religiões, vielas da era escravocrata e a história do nascimento da cidade são algumas destas. Caminhar por ruas menos movimentadas ou por caminhos que quase ninguém conhece, pode render boas descobertas.
Não é difícil chegar ao marco zero de São Paulo, basta embarcar na linha azul do metrô e desembarcar na estação Sé. Logo de início, a paisagem será caótica. Verá muitos tentando vender chips para celulares e líderes religiosos discursando no meio de uma grande concentração de gente. O novo grupo de pagode está a sua direita, enquanto o casal japonês faz mágicas a sua esquerda. A miscigenação é nítida no espaço. A frente uma estátua viva e logo atrás dela, o marco zero indicando a direção de cada região do país. Por detrás dele, a magnífica construção de 1612, a Catedral da Sé.
A visão começa a tomar outros caminhos. Agora com tempo e atenta vislumbra tudo o que está escondido em meio a tantos arranha-céus. O templo católico está deteriorado por fora e grades agora compõe sua estrutura, mas nada como cinco minutos sentado no interior da Igreja apenas para observar o quinto maior santuário neogótico do planeta.
Ao andar poucos metros no sentido da Praça Clóvis Bevilaqua, encontra-se o Tribunal de Justiça. “Esse lugar é realmente lindo. De segunda à sexta-feira está aberto a visitações. Aqui ficam as salas dos desembargadores da cidade, que julgam casos de segunda instância”, explica o policial militar que deseja não ser identificado por motivos trabalhistas. O Tribunal começou a ser erguido em 1911 pelo arquiteto Ramos de Azevedo. A intenção era abrigar a Corte em um palácio inspirado nas construções romanas. Olhando do alto da escadaria principal, pode-se ver ao lado, a torre do Comando do Corpo de Bombeiros de São Paulo, na Rua Anita Garibaldi.

“A Sé é a Sé, não existe descrição melhor para esse lugar. Aqui você encontra de tudo, desde turista brasileiro até estrangeiro”, conta Beto do carron e bateria – como é conhecido na região -, 47 anos, pernambucano, veio para a capital em busca de uma vida melhor. É jornaleiro há 20 anos na Banca Central da praça da Sé, em frente a base da Guarda Metropolitana. Apesar de existir muitos policiais pela região, Beto afirma preferir tomar cuidado, em dezembro do ano passado presenciou a morte de dois homens na escadaria da Catedral. O momento foi televisionado pelo programa Pânico na Band. “É como eu te disse, tem de tudo por aqui”, repete.
Quando questionado sobre os lugares da região que conhece Beto retruca com “às vezes eu desço a rua para ir até a 25 de março, mas só. Não tenho muito tempo de andar por aqui não. Não me recordo do nome das outras ruas de cabeça”. Para Carlos De Meo, proprietário do restaurante Piero, os paulistanos não conhecem a cidade onde vivem. “Quando falo que trabalho ao lado do Pátio do Colégio me perguntam: ‘que colégio é esse’? Não se deu, por muito tempo, importância para ensinar a pessoas a refletirem sobre o que representou São Paulo na história brasileira. Fico feliz ao ver que hoje muitas escolas trazem os alunos aqui para estudar e tirar fotos, justamente para mudar isso, para que eles saibam mais sobre a cidade onde moram”, revela.
O empresário está na região há 34 anos. Sempre manteve seu comércio de massas e café na Rua Roberto Simonsen, ao lado da antiga casa da Marquesa de Santos – Domitila de Castro Canto e Mello foi a amante de imperador Dom Pedro I – e há poucos metros do Pátio do Colégio – primeira construção da cidade. Erguido com a finalidade de catequizar os índios. “Eu não sairia daqui por nada. A minha história e da minha família está aqui. Por certo tempo a imediação foi desvalorizada, porque os prédios estavam abandonados, cresceu o número dos moradores de rua, mas, ainda bem, a Prefeitura instalou mais sedes oficiais por aqui e agora estão revitalizando o espaço”, resume em alguns segundos as mudanças marcantes do local, além de observar que os comerciantes estão esperançosos para conquistar, mais uma vez, o antigo público que migrou para a Paulista, Berrini e Pinheiros.
Adiante, entre o Solar da Marquesa e a Casa da Imagem Brasileira, existe uma antiga rua colonial preservada e viagiada por seguranças, por lá passavam os animais de carga e os escravos no tempo do Império. Já no Pátio do Colégio, no Largo Pateo do Colégio, é possível encontrar o espaço aberto que abriga, ao centro, o monumento de 25m que simbolizada o nascimento da cidade, à direita a Secretaria de Justiça, à frente Tribunal da Alçada Civil, ao fundo o antigo centro de ensino e à esquerda a continuação do percurso que desemboca na cruzada da Rua Boa Vista com a Ladeira Porto Geral, a conhecida descida que leva para o coração comercial da cidade, 25 de março.
“Vim para cá conhecer e ter uma aula de fotografia. Estou me sentindo na Europa, ou então nos tempos da colônia brasileira, só que dentro do caos paulista. Isso é demais! Não sabia que andar pelos caminhos que quase ninguém escolhe me traria tanta experiência”, conta estonteante a aluna Ana Silva do Instituto Federal IFSuldeMinas, de Passos, que veio em excursão, justamente para fotografar os tesouros escondidos da “selva de pedra”.

Por que descer a Ladeira agora? Resista a tentação dos “tênis original por R$100”, “pen drive 30GB por R$20”, “artigos para a sua festa é no quinto andar” e siga em frente. Na esquina da Boa Vista com a São Bento encontrará o Café Girondino, aconchegante cafeteria, lanchonete, bar e restaurante. A fragrância da empada de camarão, ou do sanduíche Catedral – feito com filet mignon e champignon – é de delirar. O Largo de São Bento não prende o visitante apenas pelo olfato, mas também pela visão. Dá para imaginar a riqueza que havia naquele local apenas pelas construções. São lindas, apesar da mistura de descaso social, poluição visual e sonora do comércio.
Assim como a Praça da Sé, o Largo de São Bento tem um espaço central onde se localiza outra estação de metrô, essa com o diferencial de ser mais profunda e contar com um belo jardim no final do precipício. Além disso, ao olhar para o fim da Rua São Bento, próximo ao número 405, é possível visualizar o Edifício Martinelli – primeiro arranha-céu da América Latina e o primeiro no Brasil a instalar elevadores –, mais um marco histórico ao alcance dos olhos.
Novamente, a Igreja da região chama a atenção. No interior do Mosteiro de São Bento está o mais estimado acervo de imagens de ordem franciscana do Brasil e um expressivo conjunto de obras coloniais paulistanas. O descaso com a riqueza de detalhes do monumento é visto em suas laterais, na rua Florêncio de Abreu, completamente vandalizadas.
Antigas casas de barões e da nobreza que viviam pela área até o início do século XX ainda podem ser encontradas, mas apenas quando se olha para cima das lojas coreanas, chinesas, italianas. Estão lá, algumas destruídas pelo tempo, pela má conservação, pela invasão, outras sendo revitalizadas, pela Prefeitura de São Paulo e alguns patrocinadores que desejam reabitar o espaço.
“Minha família e eu migramos para o Brasil em 1997. O objetivo dos imigrantes é chegar em São Paulo, grande megalópole, e estando aqui, abrir uma loja no centro por isso ele é assim, tão miscigenado”, explica Chang Haie, 30, herdeiro da Hunky importadora, sobre a mistura de etnias no triângulo central. “As coisas mudaram muito por aqui. No início era tudo muito bom, depois de um tempo ficou perigoso, o custo de vida é alto para quem quer morar nesse pedaço, chegaram outros concorrentes, está cada vez mais difícil trazer produtos importados, mas ficaremos aqui por enquanto. Gostamos do centro” afirma.
“O centro é tradição”, define Gerson Eugenio, 45, diretor comercial da pioneira importadora de ferramentas da região De Meo. “Essa família de italianos está presente na formação da zona central pela terceira geração seguida. Os De Meo introduziram na rua Florêncio de Abreu o segmento de ferramentas. Quando se pergunta para alguém onde comprar equipamentos deste tipo, certamente dirão na ‘Florêncio, no São Bento’”, cita sobre a importância da rua.
Seguir para o coração eletrônico de São Paulo não é difícil, basta atravessar o Viaduto de Santa Efigênia. Um verdadeiro choque artístico. Podemos encontrar o artesão, o palhaço, o pintor de rua, o reaproveitador de sucata, o violeiro com moda sertaneja, o sanfoneiro com o forró nordestino, o artista plástico e até o apostador que se acredita não existir mais.

Ao final do viaduto existem dois prédios residenciais, para Chang Haie não deve ser fácil viver ao lado de toda a perturbação sonora e à um custo de vida tão alto. “O centro agora é comercial, os apartamentos são salas comerciais”, opina o comerciante. Já para Carlos De Meo a viabilidade de morar no centro é fantástica, por conta da facilidade de estar perto de tudo. O homem torce para que o desenvolvimento não cesse.
Na Rua do Seminário, bem em frente ao clássico Hotel São Paulo Inn e a Paróquia Nossa Senhora da Conceição fica a loja Santec, especializada em artigos para instrumentos musicais, o proprietário conta que a região é muito tranquila para os comerciantes, em seus mais de 20 anos de Santa Efigênia nunca passou por nenhum momento traumatizante, por exemplo assalto. “O movimento muda às vezes por conta do medo. Os clientes não tem muita segurança de vir aqui, acham que vão ser assaltados a qualquer momento, mas, para falar a verdade, o que mais me atrapalhou foram essas ciclofaixas, porque meus clientes não podem mais estacionar, do que com os meninos de rua”, reflete sua indignação com a atitude da prefeitura, que por sua vez, acaba de esvaziar o prédio comercial que existia ao lado da loja para torna-lo residencial.
É possível notar diversos povos, culturas e comércios no centro. É possível notar as preservadas luminárias, as bases de ferro preto onde eram amarrados os cavalos, as igrejas que fundavam uma nova comunidade, a arquitetura predominante na casa dos antigos nobres e o subsolo da casa da Marquesa onde ficavam os escravos. Ele é acolhedor, une raças e classes sociais em um único lugar. Todas as ruas estão interligadas, por isso é simples circular por lá. Caso dê a ele poucos minutos de atenção, o velho e amado centro de São Paulo se transforma de “pato feio” para “formoso cisne”. Enquanto o olhar geral repara no caos, o olhar apurado se atenta aos pequenos detalhes que revelam lindas histórias.
“Se você ainda não conhece a Florêncio de Abreu, o centro, vem para cá” diz Gerson, ao mesmo tempo que finaliza Carlos com “O centro é muito bom e precisa voltar a ser explorado. Todos os bairros tem seus problemas localizados, nós temos os nossos, mas só vindo aqui para ver. O centro é ótimo”!










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