As ruas verde, branco e vermelho de São Paulo
- Renata Estimo
- 10 de mai. de 2016
- 5 min de leitura
Há mais de 140 anos, os imigrantes italianos chegaram ao Brasil para substituir a mão de obra escrava e deram vida a alguns dos mais tradicionais bairros de São Paulo, o Brás e o Bixiga. Basta passear por lá para perceber a influência italiana que ambos os bairros receberam. O falar italiano dos moradores, as cantinas, as festas, as paróquias e as cores dão um ar itálico, exalado por esses bairros.
Em meio aos galpões do Brás, um se sobressai. A suave cantoria de idosas cozinheiras – conhecidas como mammas – e um cheiro delicioso chama a atenção dos moradores. Entre panelas, travessas e três fogões de oito bocas são preparados os mais variados pratos italianos para o almoço que acontece toda sexta feira na Associação Beneficente São Vito Martir. O local parece funcionar como um ponto de encontro da comunidade italiana. Todos se conhecem e se cumprimentam calorosamente, alguns em italiano, como se fossem uma grande família.
Um deles é Matheus Rodak, filho de imigrantes italianos, nasceu em um dos muitos cortiços formados no Brás, onde só morava italiano. Hoje passa sua aposentadoria ajudando a Associação e diz pertencer à Itália. Com o sotaque carregado, recorda emocionado do macarrão que fazia com sua mãe todo domingo de manhã “fazíamos o macarrão em casa, era a maior bagunça, todo mundo ajudava”. Para ele, os redutos italianos de São Paulo ajudam a manter vivas as tradições italianas, como o macarrão de sua mãe, feito em casa. “É onde eu vou encontrar meu antepassado, vou encontrar meus pais, meus avós, virou ponto de encontro”, se empolga Matheus.

Entre as ruas Major Diogo, Avenida Nove de Julho, Rua Sílvia e Avenida Brigadeiro Luís Antônio, está a Bela Vista, mais conhecida como Bixiga. Nele, a Rua Treze de Maio é colorida pelo verde, branco e vermelho, que estão por todo lado: nos postes, nos muros e até nas bandeiras erguidas nas casas. A região é cheia de cantinas, cafés e padarias italianas. Dono de quatro dessas cantinas, Walter Taverna, celebridade no bairro, destaca a culinária entre as tradições que os imigrantes italianos trouxeram para o Brasil. “Os imigrantes que vieram para o bairro do Bixiga tinham que desenvolver um trabalho, a maioria deles, gente pobre com vontade de vencer, começou a trabalhar com alimentação”, explica Waltinho, assim apelidado por seus vizinhos. O macarrão, a pizza e a fogazza são apenas uns dos pratos típicos italianos que os brasileiros aderiram. Em São Paulo são feitas cerca de 570 mil pizzas por dia, segundo a da Associação Pizzarias Unidas do estado.
Uma tradição que algumas cantinas italianas aderiram aqui no Brasil não vem da Itália. Foi, na verdade, inventada por Walter Taverna. O panelaço surgiu de uma forma curiosa. Certo dia, Walter caiu enquanto servia as mesas tricolores do seu restaurante, daí surgiu a ideia de bater as tampas das panelas durante a tarantela, música tradicional italiana. Até hoje, com 82 anos, o filho de sicilianos bate as panelas quando a sua cantina Conchetta está cheia.
Dentro da comunidade ítalo-brasileira há um esforço para manter os costumes vivos. Em uma esquina da Rua Treze de Maio, a simpática Cantina Capuano, a mais antiga em funcionamento ininterrupto de São Paulo, prepara o fusilli, massa comprida furada por dentro e oriunda do sul da Itália, há 107 anos. O restaurante, decorado com pôsteres da Azurra, faz o molho do próprio tomate, de maneira tradicional e apurado por horas a fio. Dono da casa há 35 anos, Donato Pinto Rapolli, diz ter o maior cuidado para manter tudo orignal da Itália, mas confessa servir alguns pratos ‘abrasileirados’, como filé à parmegiana.

Não deixar as tradições morrerem é um dos objetivos da Festa de São Vito. É o único lugar onde os pratos guimirella, fígado do boi enrolado em um rendão de banha de porco, e a ficazza, uma pizza feita com batata, podem ser encontrados em São Paulo. As receitas, cheias de ingredientes especiais, são passadas de geração para geração e guardadas à sete chaves pelos organizadores. A festa italiana vai completar 98 anos de muita comida e música tipicamente italianos, no Brasil a festa dura mais que na Itália. Depois de doze meses de preparação, Seu Modesto Netto, o organizador, mal vê a hora de servir as mais de mil pessoas que o evento espera todas as noites de sábado e domingo do mês de junho.
Fora a de São Vito, São Paulo recebe mais três grandes festas de rua italianas. A Festa de Nossa Senhora de Casaluce é a mais antiga, realizada no Brás durante todo o mês de maio, recebe cerca de 30 mil visitantes por final de semana. Já Festa de Nossa Senhora Achiropita, no Bixiga, é comemorada há mais de 80 anos. O seu Walter Taverna, o mesmo do panelaço, foi o responsável por levar essa festa às ruas. A de San Genaro é a mais nova, e acontece em setembro, na Mooca. Essas festas resgatam a origem de seus respectivos bairros e reúnem famílias italianas de toda a cidade. Matheus Rodak, da Associação São Vito, espera o ano todo pelas festas italianas, e se orgulha de ajudar na organização da Festa de São Vito “a gente se prepara o ano todo para a festa, assim que acaba uma já estamos pensando na outra”.
Todas as festas levam nome de santos trazidos para o Brasil por imigrantes italianos. A fé é outro aspecto que une a comunidade italiana. A Paróquia de Nossa Senhora Achiropita fica próxima à Cantina Capuano do seu Donato Rapolli, que foi coroinha lá da quando criança, e é adepto do local e devoto da santa até hoje. Esse amor todo é pode ser comparado ao sentimento que Matheus Rodak tem por São Vito. Enquanto mostra as inúmeras imagens do santo que decoram a Associação Beneficente São Vito Mártir, Matheus vai contando a origem e os milagres de São Vito, o protetor dos artistas, das doenças nervosas e dependentes de drogas. “A nossa [Associação] devoção ao São Vito é muito grande, durante a festa, as pessoas trazem seus pedidos e colocam aos pés do santo”, conta Matheus com um sorriso no rosto.
Segundo alguns moradores, apesar dos esforços da comunidade italiana, o Brás já perdeu muito da sua raiz italiana, e o Bixiga vai pelo mesmo caminho. Muitas cantinas e restaurantes italianos pertencem a empresários que não possuem essa forte identificação com a Itália. “Hoje o italiano do bairro sumiu, quem não morreu, foi embora, só sobrou o nome do bairro italiano”, desabafa Donato Rapolli.
Mas pessoas como Donato, Matheus e Walter Taverna sempre estarão lutando para manter as tradições e costumes italianos vivos na cidade que possui a terceira maior colônia italiana fora da Itália. Transmitindo de geração para geração o amor e a identificação com a origem de seus antepassados, a comunidade italiana segue escrevendo parte da história do Bixiga e do Brás e, junto com as diversas culturas e etnias, forma a identidade da cidade de São Paulo.
Comments