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A noite mais "loka" de Sp

  • Juliana Souza
  • 10 de mai. de 2016
  • 4 min de leitura

Você entra num boteco – não aquele gourmet que está na moda, mas um desses que seu avô certamente assistiria ao jogo do domingo à tarde – no coração do Jardim Guarujá, periferia da zona sul de São Paulo. A birita de todo gosto, ovo na conserva, mesa de madeira, crucifixo na parede da cozinha e pipas, muitas pipas penduradas no teto. Quem acreditaria que ali, uma vez por semana, acontece “a noite mais loka de SP”? Pelo menos, é isso que está escrito na descrição da página do Cooperifa no Facebook.

Criada há 15 anos pelo poeta Sérgio Vaz, o mineiro mais paulista da quebrada, a Cooperativa Cultural da Periferia garante alegria, reflexão e muito bate-papo a muito trabalhador que resolve ouvir um pouco de música e poesia depois de uma dura jornada, como é o dia-a-dia na maioria dos subúrbios brasileiros.

Criolo, o rapper tardio, cria do Grajaú e da Cooperifa, avisa: “Cê quer brisa? Vai escutar poesia. Toda quarta-feira ainda tem Cooperifa.”. É nesse dia que, no bar do Zé Batidão, os vasilhames de cachaça e o controle remoto da tevê cedem espaço ao livro e ao microfone no andar de cima do recinto.

“Eu gosto por que sinto minha alma leve”, conta uma emocionada dona Luzia os motivos que a fazem voltar; surpresa com a abordagem, explica: “Meu filho gosta dessas coisas e me convidou para ouvir ele cantar um rap. Agora eu sempre venho”.

Em uma região onde a rotina é trabalhar para viver e viver para trabalhar não difícil entender qual a importância da Cooperifa. Já dizia o mestre do Canão, o imortal Sabotage “Zona Sul, maluco. Cotidiano difícil”.

O Jardim Guarujá fica no extremo-sul paulistano, onde o acesso nunca é fácil. Existe uma única linha de ônibus que sai do Terminal Campo Limpo e passa pelo bairro. Alguns moradores que trabalham no centro levam até duas horas no retorno para casa. “Parece que moro em outra cidade, é muito isolado”, desabafa Jair, assistente de telemarketing que trabalha perto do metrô São Bento. “Por isso venho para cá, né? Encontro meus parceiros, tomo uma cerveja e ainda escuto poesia. Mano, me sinto bem aqui. Minha realidade fica mais fácil”.

As pessoas se respeitam, escutam, trocam ideias umas com as outras e, não raro, voltam para casa notadamente satisfeitas, num intercâmbio que faz muito bem à convivência da vizinhança e às vezes pode até garantir o convite para o churrasco na laje do domingão. Mas o importante mesmo é que o Cooperifa pode proporcionar uma coisa que todo homem da periferia busca, um momento de tranquilidade, junto com os seus, longe dos patrões chatos e também dos “corres errados”, que ceifa a vida de muita gente honesta que se vê atraída pelo tráfico e pelo roubo.

Arte da periferia para a periferia. Tudo sem muito cerimonial, sem aquela erudição blasé de encontros literários que vemos por aí afora; os versos ali recitados, aliás, já foram parar em música de banda famosa. “Milagres acontecem quando a gente vai à luta” é entoado por muito fã da banda O Teatro Mágico, presença recorrente nos saraus, esse trecho faz parte de um poema de Sérgio Vaz.

Hoje a relevância sociocultural do projeto é, naturalmente, bem maior do que há quinze anos. O pessoal de Sérgio Vaz já organiza uma mostra cultural periódica, recebe visitas ilustres e realiza shows com artistas de certo renome, garantindo vida longa ao projeto quase adulto. Além disso, o projeto conta com um certo apoio da Prefeitura de São Paulo, e assim consegue realizar saraus dentro de alguns Centros Unificados de Educação (CEUs), levando um bom poema para a criançada, que desde cedo já vai entrando em contato com a arte.

Um dos mais notáveis eventos do Cooperifa é a “Chuva de Livros”, onde os participantes do sarau ganham diversos livros de romance, contos, poesias e clássicos infantis. A última edição distribuiu mais de 400 exemplares para os frequentadores. “Comprar livro tá caro. Até parece que não querem que pobre saiba ler, fique culto. Tá aí a importância do Cooperifa, amiga. Aqui pobre aprende e confronta a elite do jeito mais bonito, com poesia”. Foi isso que a Joyce, estudante de Gestão Pública disse, com os olhos brilhando. Ela mora no Parque Independência, um bairro do lado do Jardim Guarujá, e tenta frequentar os saraus quando sai mais cedo da faculdade.

A sensibilidade social é nítida naquele espaço. A importância que a organização do Cooperifa dá a questão da educação e da arte para a população mais pobre poderia constar nos projetos de governo, mas talvez isso seja muito utópico. O que se sabe é que o Cooperifa faz acontecer. Sua campanha de doação de livros a crianças pobres é de se invejar, e seu encontro “A Palavra Marginal de Outros Poetas” mostra quanta cultura fica escondida nas entranhas das periferias urbanas de São Paulo.

É importante, e quase óbvio ressaltar que naquele local não existe espaço para o preconceito de qualquer espécie. O “Ajoelhaço”, que acontece no Dia Internacional da Mulher, homenageia as mulheres, deixando todos os homens presentes literalmente de joelhos as frequentadoras do sarau, mostrando que ali o machismo não é bem-vindo. Sérgio Vaz também é uma figura constante em projetos do movimento negro, e não deixa que nenhuma piada homofóbica seja despejada no Bar do Zé Batidão.

Quem vai aos encontros da Cooperifa sabe que ali existe uma consciência social muito além daquela do ambiente acadêmico ou dos grandes centros de pesquisa; no Bar do Zé reside, uma vez por semana, o senso de realidade e resiste a luta do morador da periferia. “A felicidade ainda que tardia, deve ser conquistada, e que ninguém mais agradeça pelas migalhas do cotidiano” Sérgio Vaz.


 
 
 

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