A história do Bom Retiro através da pluralidade de etnias
- Martha Amorim
- 10 de mai. de 2016
- 8 min de leitura
A convivência harmoniosa de judeus e coreanos e as adaptações com a chegada dos bolivianos

O Brasil é conhecido como um país de muitas culturas e muitas tradições. Em nossa história, a imigração de estrangeiros foi responsável pela diversidade que hoje encontramos, resultado da vinda de muitas famílias em busca de uma opção de lar para recomeçar a vida. Os últimos picos ocorreram durante o século XX e XXI. É de conhecimento geral, que a cidade de São Paulo é resultado da miscigenação de diversos povos que vieram atrás de esperança e oportunidade de um futuro melhor. Cada bairro que compõe a cidade, representa uma história e uma cultura, que com o tempo se regenera e se adapta à etnia presente. O bairro Bom Retiro localizado na parte central da cidade de São Paulo traz consigo muito além do que só uma história, traz uma conquista.
No começo do século XX o bairro Bom Retiro foi o destino e abrigo dos judeus, primeiro vieram os da Rússia, depois da Polônia, de Israel e em seguida os países restantes da Europa. O bairro pertenceu por muitos anos aos judeus, que lá chegaram de navio e depois trem, descendo na Estação da Luz. Se acomodaram, e foram em busca de uma casa e um emprego. A comunidade judaica tem uma forte característica de ajudar o próximo, em especial os seus conterrâneos, devido sua história e tudo que sofreram. Na Rua Newton Prado, tem a Instituição Beneficente Israelita TenYad (Ten - dar; Yad - ajudar), que é uma das mais antigas do bairro e tem como intuito ajudar a colônia judaica. Oferece todo o tipo de auxílio: alimentos, roupas, dinheiro, emprego, casa e enxoval para noivas. O Sr. Alberto Benhaim veio sozinho de Marrocos para o Brasil, ajudou na construção do bairro e hoje com 87 anos, viúvo, sozinho e com diabetes, recebe ajuda e apoio desta Instituição, como uma refeição diária entregue em sua casa, hospedagem e companhia nas festas religiosas.
Josef Benhaim, filho do Sr. Alberto com sua esposa brasileira, é conhecido por todos como Zé. Hoje morador do bairro de Higienópolis, contou em detalhes sua infância e juventude enquanto passeávamos pelas ruas do Bom Retiro. A cada três quarteirões ele esbarrava em alguém conhecido daquela época. Um exemplo é dona Marli, que foi sua vizinha e hoje é diretora da Escola Renascença; a encontramos na Rua da Graça, em frente ao Memorial da Imigração Judaica. A dois quarteirões dali, fica a Escola Talmud Thorá na rua de mesmo nome, onde ele estudou e passou a maior parte de sua infância. Logo em frente, seu avô tinha uma alfaiataria; e nesta mesma rua, encontrava-se o médico da família, algumas casas adiante ficava o Movimento Juvenil Ichud Habonin (União dos construtores) lugar de recreação e estudo religioso; exatamente ao lado do Instituto tinha uma Sinagoga Ortodoxa, de judeus extremamente religiosos. Ao lembrar de sua infância Zé dá uma breve risada e comenta "era algo contraditório, no instituto íamos de shorts, camiseta, ficávamos brincando e fazendo algo que teoricamente não se podia, e ao lado, estava esta Sinagoga frequentada por meninos de calça e camisa social, todos muito sérios"; Foi com um pouco de melancolia que constatamos que muito dos lugares não existem mais ou mudaram para outro bairro, principalmente para o Higienópolis, e por fim comentou: “mas a escola continua, hoje é um colégio apenas de garotas, onde minha filha estudou."
A influência dos imigrantes no local é tanta, que cada colônia recebeu reconhecimento por sua contribuição para a formação do bairro. Os judeus foram homenageados com algumas ruas, como a Rua Tocantins que passou a ser chamada de Rua Talmud Thorá, que significa “Ensino da Thorá”, ou seja, Pentateuco composto por 5 livros do Antigo Testamento; e a Rua Lubavitch, antiga Rua Correia dos Santos, que recebeu o nome em homenagem ao primeiro grande rabino (líder espiritual), conhecido como Rebe de Lubavitch. Os coreanos hoje já estão estabelecidos no bairro inclusive com algumas Igrejas Católicas Orientais, como a Igreja Missionária Oriental de São Paulo, outras conquistas vieram através de seus negócios espalhados no bairro, desde culinária típica até o comércio de roupas em atacado.
O Bom Retiro é composto por dez Sinagogas. O número é grande pois a cada leva de imigrantes judeus que chegavam no Brasil, construía-se uma nova. Apesar de ser uma única religião, existem pequenas diferenças na forma como se reza e se profere as diferentes melodias. Há várias correntes, da ultra ortodoxa até a ultra reformista, além disso, cada judeu prefere ficar próximo aos seus conterrâneos.
A maioria das Sinagogas do bairro passaram por uma mudança no visual, foram construídos muros, que esconde um pouco a beleza extraordinária de cada uma. O muro representa uma insegurança que os moradores do bairro tem. Mesmo sendo um local sagrado, teme-se que pessoas desonestas acabem entrando não pela fé e sim por interesse. Este medo pode ser devido a proximidade da Cracolânida, que não está mais concentrada em um único lugar, e sim espalhada por todo o centro, ficando boa parte ao redor da Estação da Luz. Outro motivo de hesitação é a proximidade da Favela do Gato do Bom Retiro.
Nos anos 60 e 70 os imigrantes coreanos vieram para o Brasil para tentar melhorar as condições de vida, uma vez que depois da guerra da Coreia, o país estava devastado e em situações precárias. Ninguém sabia falar português, a grande maioria veio sem dinheiro, alguns com toda a família e outros vieram primeiro para conseguir se estabilizar e depois poder trazer seus familiares, vieram de navio atravessando os oceanos. Patrícia Kim foi um desses imigrantes, e ao falar sobre o assunto recorda, "eu mesmo me lembro como o mar era agitado apesar da pouca idade ." Nascida na cidade de Seul da Coreia do Sul, hoje possui uma loja de roupa chamada Hidrogênio, há 25 anos na Rua Aimóres, e comenta como foi sua acomodação no início, "a adaptação foi extremamente difícil no começo, o Brasil é oposto da Coreia em termos de clima e o tipo de culinária. Mas o povo brasileiro é muito caloroso e com certeza isso ajudou bastante no início."
Os coreanos iniciaram sua entrada no comércio oficial do Bom Retiro e do Brás, com a venda de roupas artesanais, nas ruas. Depois passaram a ocupar os espaços deixados pelos judeus, fazendo um esquema de pronta entrega, em que a confecção deixava pronta as roupas sem precisar fazer um pedido antecipado. Os coreanos introduziram a venda de atacado para a comercialização do bairro e da cidade de São Paulo, Patrícia Kim relata sua experiência, "creio que os coreanos colaboraram bastante para deixar a moda mais acessível no Brasil pois antigamente só existia roupa básica ou de marcas mais caras, os coreanos conseguiram fazer roupas de moda com custo baixo para a população mais carente no início, e depois para as várias camadas da população conforme a expansão e crescimento das confecções ", assim conclui que a história da confecção atual brasileira está ligada aos imigrantes coreanos.
Ainda hoje há a entrada de imigrantes coreanos no Brasil, em busca de uma oportunidade de trabalho. Brian Lee de 19 anos, veio para o Brasil com sua mãe em 2012, em busca de um recomeço. Sua mãe Sun Hee conseguiu um emprego em uma cafeteria apenas seis meses atrás, e assim pôde trazer seu filho mais novo para morar com eles. Lee comenta que quando chegou no bairro, não teve muita dificuldade para achar os lugares, pois no Bom Retiro as pessoas falam sua língua e há mercados, restaurantes e lojas unicamente coreanos. Apesar da grande quantidade de mercadorias típicas da Coreia, Lee confessa que os produtos no seu país são melhores, mas que ele já provou a comida brasileira e é fã de feijoada. A respeito da comida, Patrícia Kim esclarece, "os coreanos ainda comem a comida típica, mas gostam bastante de comida brasileira e italiana. A nova geração é mais eclética e come de tudo, eles têm mais acesso do que os primeiros imigrantes".
Atualmente, o bairro que pertenceu por muitos anos aos judeus, está esvaziando, dando lugar a novas colônias como a coreana e a boliviana. Ao chegar na Estação da Luz, os judeus foram atraídos pelo novo bairro em desenvolvimento, Bom Retiro. Assim eles chegavam, se acomodavam, começavam a trabalhar, ganhavam dinheiro e a partir do momento que começavam a juntar algum capital, migravam para outros bairros, como o Higienópolis, Pinheiros, Vila Mariana e Perdizes. Ao passear pelas ruas conhecidas, é possível notar sinais desta realidade. Um exemplo significativo é a Escola Renascença, inaugurada em 1922 no Bom Retiro, onde cresceu para mais de 2 mil alunos, se estabilizou, ampliou para Higienópolis, mas que hoje mantém apenas esta unidade. Encontramos também exemplos de lugares tradicionalmente judaicos, que mudaram sua essência, como o restaurante, antes chamado Buraco da Sara, que era o ponto de encontro para os judeus, e hoje chamado de Bistrô da Sara, que mudou a ponto de servir a única coisa que o judeu não pode comer, carne de porco.
Apesar do esvaziamento judaico no bairro, ao caminhar pelas principais ruas, Prates, Graça, José Paulino, Três Rios e Guarani, ainda é possível achar algumas lojas antigas de judeus, que presenciaram muita história e que continuam sobrevivendo à nova realidade. Na Rua Prates, encontramos a loja Derby Esporte Ltda. pertencente ao David e sua esposa Rebeca Sznifer, estão neste ponto desde 1993, mas que foi inaugurada na Rua Guarani em 1973. David é um antigo amigo de Zé, os dois fizeram parte do Movimento Juvenil Ichud Habonin. David é um senhor carismático, extrovertido, muito simpático e que não perde tempo para contar suas piadas no meio dos assuntos. Seus clientes são frequentes, alguns são amigos, outros são os coreanos, que estão muito presentes no bairro, outros bolivianos, as vezes um estrangeiro, ou um curioso, ou até mesmo uma estudante de jornalismo, a procura de material para sua matéria. Há toda uma diversidade. Com tom de conquista Sznifer comenta "nesta ultima copa de 2014, a minha loja foi a loja esportiva que mais vendeu camisa da seleção da Coreia", logo em seguida contou uma piada e caiu na gargalhada.
Nos dias de hoje, a presença dos bolivianos está cada vez forte na cidade de São Paulo, principalmente no Bairro Bom Retiro, que é o grande centro de empregos. Os imigrantes vem em busca de trabalho, aumento salarial e uma vida melhor, mas nem sempre conseguem o que esperam. Eduardo Malon veio sozinho para o Brasil em 2001, mora no mesmo lugar que trabalha como costureiro, mas o que gosta mesmo de fazer é ser locutor de rádio em um programa que passa todo final de semana. Com um sorriso no rosto Malon comenta outra atividade essencial na sua rotina, "ao contrário de muita gente que vive para trabalhar, eu trabalho para viver, para conseguir ter tempo de fazer as coisas que eu realmente gosto, como ir todos os finais de semana na feira dos bolivianos, aqui perto".
O bairro Bom Retiro além de disponibilizar um amplo comércio de roupas em atacado, tem muita história e cultura a oferecer para a cidade de São Paulo. O bairro que abrigou inúmeras famílias estrangeiras, foi a esperança e oportunidade de muitos, para recomeçarem suas vidas. É o lugar em que é possível achar e conhecer comidas típicas judaicas, coreanas, árabes e armênias. Apesar do esvaziamento da cultura judaica, ainda é possível encontrar lojas e restaurantes pertencentes aos imigrantes e descendentes de judeus. Um bom exemplo é o FalaFel da Malka, conhecido como o melhor Falafel da Capital. Sra Malka criou o restaurante há 40 anos, hoje é gerenciado pela sua filha El Al (que tem seu nome em homenagem a companhia aérea de Israel, a mais segura do mundo por conta dos terrorismos, El - Deus, Al - acima; só Deus acima do avião). As duas e seus familiares vieram de Israel no começo do século XX. Independentemente das diversas culturas estrangeiras que passam e se instalam no bairro, uma não elimina a outra. É a pluralidade e a variedade de etnias que definem o bairro como ele é hoje.
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